Cuidadores não-remunerados: a última fronteira da igualdade de gênero(*)

Todos os dias, milhões de americanos prestam cuidados não-remunerados a um familiar ou amigo. ¹. A pandemia de COVID-19 criou uma crise de cuidados, com milhões de pessoas agora mais dependentes de cuidados não-remunerados e 40% dos cuidadores aumentando o número de horas de cuidados que eles provêem. ².

A carga das necessidades de cuidados não-remunerados continua a recair desproporcionalmente sobre as mulheres, com efeitos devastadores sobre a saúde, o bem-estar e a participação na força de trabalho. Mas, como tantas outras desigualdades reveladas pela pandemia, a divisão de gênero do cuidado familiar não é nova, apenas foi agora exposta e exacerbada.

cuidadora2-1 - Academia de Pacientes 2030©

O que você vai ler a seguir neste post

Uma dimensão de gênero negligenciada da vida familiar
Cuidados familiares modernos: Cuidados complexos sem treinamento ou apoio adequados
As atuais reformas dos cuidados de saúde institucionalizam a marginalização das mulheres?
As cargas físicas, mentais e econômicas de cuidar desproporcionalmente experimentadas por mulheres
Apoiar os cuidadores requer intervenções de políticas abrangentes e se opor às normas de prestação de cuidados de gênero
Intervenções ao nível do cuidador
Intervenções ao nível do local de trabalho e ao nível dos sistemas de saúde
Intervenções em nível social
Conclusões
No Brasil, mães são maioria entre cuidadores de pacientes com doenças raras

Uma dimensão de gênero negligenciada da vida familiar

Normas profundamente enraizadas em todo o mundo fazem com que cuidar da família ainda seja amplamente percebido como o chamado trabalho feminino.3 Essas normas de gênero incluem as mulheres sendo vistas como intrinsecamente mais carinhosas, sensíveis e altruístas.

As experiências socioculturais que começam na infância, incluindo brincar e modelar papéis, criam e reforçam essas normas, socializando as mulheres em papéis de cuidadoras. ³. Em contraste, normas de gênero profundamente arraigadas sobre a masculinidade — muitas vezes definidas em oposição à feminilidade — criam barreiras para os homens agirem como cuidadores. ⁴Conseqüentemente, as mulheres americanas prestam 2,2 vezes mais cuidados familiares não-remunerados em relação aos homens. ⁵.

Ao longo do último meio século, a sociedade obteve alguns ganhos – embora inadequados – ao lidar com as divisões de gênero dos cuidados infantis e trabalho doméstico, mas o desequilíbrio de gênero na terceira dimensão da vida familiar, o cuidado não-remunerado, permanece relativamente inconteste. ⁶

ODS da Agenda 2030 relacionados ao tema dos cuidadores familiares não-remunerados

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Cuidados familiares modernos: Cuidados complexos sem treinamento ou apoio adequados

Enquanto os cuidadores familiares tradicionalmente forneciam apoio emocional e básico com tarefas domésticas e cuidados pessoais, um aumento nas necessidades de cuidados de saúde domiciliares agora faz com que cuidadores não-remunerados assumam funções mais complexas com pouco ou nenhum treinamento ou apoio. ⁷. ⁸

Trinta bilhões de dólares: Esta cifra representa a perda de produtividade anual para a economia norte-americana suscitada pelos cuidados familiares não-remunerados

Mais da metade de todos os cuidadores executam tarefas médicas normalmente realizadas por profissionais de saúde, como enfermeiros, farmacêuticos ou fisioterapeutas respiratórios. ⁹

Espera-se também que os cuidadores familiares ajudem a navegar nos complicados sistemas de saúde e serviço social, compreendam e rastreiem informações complexas de saúde e sirvam como substitutos dos coordenadores de cuidado, advogados e tomadores de decisão. ¹⁰

As atuais reformas dos cuidados de saúde institucionalizam a marginalização das mulheres?

As atuais reformas do sistema de saúde, incluindo o cuidado baseado em valor e responsável, estão cada vez mais descentralizando o cuidado dos ambientes de internação para o lar e a comunidade. Essas mudanças são baseadas na suposição implícita de que os cuidadores familiares – a maioria dos quais são mulheres – fornecerão esse cuidado cada vez mais complexo em casa sem suporte adicional. ¹¹.

Estima-se que os cuidadores familiares forneçam aproximadamente 80% dos cuidados diretos domiciliares e serviços comunitários de assistência, contribuições não pagas avaliadas em 600 bilhões de dólares americanos anualmente. ¹². ¹³. ¹⁴.

No entanto, os cuidadores familiares são em grande parte invisíveis social e politicamente, e seu trabalho real e necessário está fora da economia de mercado. ¹⁵

As cargas físicas, mentais e econômicas de cuidar desproporcionalmente experimentadas por mulheres

Embora cuidar possa ser pessoalmente recompensador, para muitos pode criar tensão física e psicológica cumulativa que é prejudicial à saúde. ¹⁶.

Em comparação com os não-cuidadores, os cuidadores familiares, especialmente as mulheres, experimentam maior sofrimento emocional, depressão, ansiedade e isolamento social; saúde física prejudicada; diminuição dos comportamentos preventivos e de autocuidado; maior uso de cuidados em fases agudas; e até aumento da mortalidade. ¹⁷. ¹⁸

Um total de 60% dos cuidadores estão fazendo malabarismos entre cuidados não-remunerados e responsabilidades de trabalho remunerado. Muitos são forçados a reduzir suas horas de trabalho, tirar licenças ou sair da força de trabalho. ¹⁹.

Essas interrupções no emprego, exacerbadas pela pandemia de COVID-19, reduzem a renda dos cuidadores familiares, os benefícios da Previdência Social e outros benefícios de aposentadoria , resultando em insegurança financeira do cuidador e uma perda de produtividade estimada de 30 bilhões de dólares para a economia dos EUA anualmente. ²⁰

Apoiar os cuidadores requer intervenções de políticas abrangentes e se opor às normas de prestação de cuidados de gênero

O relatório Families Caring for an Aging America de 2016 e a Estratégia Nacional de Apoio aos Cuidadores Familiares de 2022 reconhecem que o cuidado ocorre em um contexto multifacetado e recomendam que as intervenções sejam direcionadas ao cuidador, local de trabalho e organização de assistência médica e níveis sociais.Schulz ²¹. ²².

A implementação bem-sucedida dessas intervenções políticas exigirá uma lente baseada em gênero, que desafie as normas de gênero que tratam as mulheres como cuidadoras esperadas primárias e os homens como cuidadores inautênticos e secundários. ²³

Intervenções ao nível do cuidador

As intervenções efetivas para o cuidador são geralmente multidimensionais e incluem resolução de problemas, treinamento de habilidades, grupos de apoio, aconselhamento, terapia familiar e descanso. ²⁴.

Uma vez que o cuidado é frequentemente visto como uma parte natural do trabalho da mulher, as cuidadoras têm menos probabilidade de receber assistência de família e amigos, e usar serviços externos de cuidado e apoio. ²⁵. Como tal, as cuidadoras podem precisar de uma maior intensidade de apoio do cuidador e esforços de divulgação específicos para garantir aceitabilidade e acessibilidade.

Em abril de 2023, o governo Biden-Harris dos EUA anunciou um conjunto de ordens executivas focadas na prestação de cuidados, incluindo aumento dos cuidados temporários, mais apoio durante o processo de planejamento de alta e suporte ampliado à saúde mental. ²⁶

Intervenções ao nível do local de trabalho e ao nível dos sistemas de saúde

As políticas de local de trabalho favoráveis ao cuidador podem ajudar homens e mulheres a gerenciar suas responsabilidades de cuidar sem comprometer a segurança financeira ou o avanço na carreira.

Essas políticas incluem horários e acordos de trabalho flexíveis, complementando e ampliando os benefícios de licença familiar publicamente disponíveis e programas de assistência aos funcionários que envolvem grupos de apoio, aconselhamento e workshops de habilidades.²⁷

Há também uma necessidade premente de reformas nos planos de saúde públicos e privados que excluem amplamente os cuidadores familiares de receber serviços diretos ou financeiros e outros apoios – que são limitados à pessoa que recebe cuidados diretamente – apesar dos efeitos bem documentados sobre a saúde dos cuidadores familiares .²⁸ Isso é prejudicial à saúde do paciente e do cuidador.

Embora os movimentos de assistência à saúde, como o cuidado centrado na pessoa e na família, tenham aumentado o perfil do cuidado familiar, ainda há necessidade de uma conscientização muito maior sobre a intensidade e a complexidade dos papéis que os cuidadores assumem e os desafios que enfrentam. ²⁹ ³⁰. ³¹. ³².

A Estratégia Nacional de Apoio aos Cuidadores Familiares exige uma campanha de conscientização nacional e culturalmente competente.³³ Isso seria fortalecido ao incluir-se um foco na divisão de gênero do cuidado familiar, de modo que os formuladores de políticas e o público pudessem entender os riscos inerentes à autodeterminação, saúde e segurança financeira das mulheres colocados por políticas que promovem e dependem fortemente de cuidadores familiares não remunerados, sendo a maioria mulheres..Levine C. ³⁴

Os Estados Unidos são únicos entre seus pares econômicos na falta de provisões universais e robustas para licença familiar remunerada. A Lei de Licença Médica e Familiar de 1993 garante apenas 12 semanas de licença não-remunerada com proteção de emprego para cuidar de um pai, cônjuge ou filho com uma condição de saúde grave, e isso está disponível apenas para 60% dos cuidadores na força de trabalho.

Um programa nacional de licença familiar remunerada que usasse a definição mais ampla possível de família para elegibilidade ajudaria a garantir que grupos merecedores de equidade – incluindo mulheres – pudessem se beneficiar melhor de tal programa. ³⁵.

Os cuidadores familiares poderiam ser mais protegidos financeiramente ao permitir que acumulassem créditos de segurança durante a licença de cuidador e oferecendo créditos fiscais reembolsáveis para despesas relacionadas a cuidados.³⁶ ³⁷.

Por fim, a pandemia de COVID-19 acelerou a necessidade de uma reforma no financiamento de cuidados de longo prazo. Atualmente, mais da metade de todos os custos de cuidados de longo prazo nos EUA são pagos do próprio bolso. Quando isso não pode ser feito, os cuidadores familiares geralmente assumem responsabilidades financeiras e de cuidado direto.

A Estratégia Nacional de Apoio aos Cuidadores Familiares defende um programa nacional público de seguro social de cuidados de longo prazo, que inclua benefícios para os cuidadores. Isso garantiria a cobertura de um conjunto flexível de bens e serviços—incluindo assistência domiciliar, refeições e equipamentos—necessários para manter o status de comunidade.³⁸

Conclusões

A pandemia do COVID-19 destacou o papel crítico do cuidado familiar não remunerado, como as mulheres assumem desproporcionalmente essas responsabilidades e como arcam com as consequências físicas, mentais e financeiras de fazê-lo.

Desafiar essa dimensão de gênero da vida familiar é essencial para melhor apoiar os cuidadores (incluindo homens que são cuidadores e cuidadores não binários), garantindo que as intervenções do cuidador sejam implementadas de forma equitativa e criando uma sociedade mais equitativa e resiliente em um futuro pós-pandêmico.

No Brasil, mães são maioria entre cuidadores de pacientes com doenças raras

Segundo a Pesquisa Nacional dos Cuidadores de Pacientes Raros no Brasil, as mães representam 81% dos cuidadores de pacientes com doenças raras. Desse percentual, 78% prestam assistência 24 horas por dia aos pacientes e 46% tiveram que pedir demissão do emprego para cuidar de seus entes queridos. Além disso, 65% dessas mães não se sentem totalmente reconhecidas por seu papel de cuidadoras.

O estudo foi encomendado pela Casa Hunter, com o apoio da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas). As responsabilidades dos cuidadores são significativas. A pesquisa revela que 92% dos cuidadores acompanham os pacientes às consultas, escola e outras atividades externas. Além disso, 80% dos cuidadores cuidam da alimentação do paciente, 73% auxiliam na higiene pessoal, 70% auxiliam no curativo, 58% acompanham ao banheiro e 48% auxiliam na locomoção.

O estudo também abordou o envolvimento dos pais no apoio aos cuidados de pessoas com doenças raras. Setenta e oito por cento das mães relataram receber ajuda financeira do pai do paciente, 72% moram com o pai do paciente e 64% das mães recebem apoio emocional do pai.

Tramita no Senado Federal, mais precisamente na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), o Projeto de Lei 76, de 2020. De autoria do Senador Chico Rodrigues (DEM-RR), ele “cria e regulamenta as profissões de Cuidador de Pessoa Idosa, Cuidador Infantil, Cuidador de Pessoa com Deficiência e Cuidador de Pessoa com Doença Rara bem como dá outras providências”. Cabe à senadora Ana Paula Lobato (PSB-MA) a relatoria do referido PL.

(*) Stall NM, Shah NR, Bhushan D. Unpaid Family Caregiving—The Next Frontier of Gender Equity in a Postpandemic Future. JAMA Health Forum. 2023;4(6):e231310. Publicado em 9 de junho de 2023.

Foto de National Cancer Institute na Unsplash