Quando a sua ignorância é uma bênção

Ao longo de nossa caminhada nesse blog você irá compreender que a Saúde Pública busca a promoção da justiça social. No caso das doenças raras, percebem-se iniquidades na assistência a estes pacientes que, na verdade, representam um desafio global. Iniquidades são desigualdades injustas, porque evitáveis. Para além do medicamento, cujo acesso é um direito fundamental, outros determinantes são responsáveis pela sua saúde e bem-estar.

Você verá isso ao longo dessa nossa jornada que começa aqui, com os primeiros posts desse blog. Para falarmos de injustiças, natural que você precise conhecer o que é justiça, e, sobretudo, o que é saúde como questão de justiça. São assuntos relevantes quando se aproxima o Dia Mundial das Doenças Raras. Por isso aqui, com a ajuda de Alain de Botton, vamos lhe propor um experimento mental. Com ele, ficará mais fácil você saber o que é justo e injusto, inclusive no que diz respeito à Saúde Pública. Sigamos nessa caminhada de aprendizagem mútua, que está apenas começando.

ALAIN DE BOTTON

Muitos de nós sentimos que nossas sociedades são um pouco – ou totalmente – injustas. Mas temos dificuldade de explicar nosso senso de injustiça aos que nos governam, de uma forma a soar racional, sem parecer irritados ou queixosos.


É por isso que precisamos de John Rawls, um filósofo norte-americano do século 20 que nos oferece um modelo à prova de falhas para identificar o que realmente poderia ser “injusto” _ e como podemos conseguir apoio para consertar as coisas.


Nascido em Baltimore, Maryland, EUA, em 1921, Rawls _ apelidado de Jack _ foi exposto (e respondeu) às injustiças do mundo desde muito jovem. Quando criança, ele testemunhou em primeira mão a pobreza chocante nos Estados Unidos, a morte de seus irmãos de uma doença que ele involuntariamente transmitiu a eles, e os horrores e a ilegalidade da Segunda Guerra Mundial.

Tudo isso o inspirou a ingressar na vida acadêmica: ele queria usar o poder das idéias para mudar o mundo injusto em que ele vivia.


A publicação de A Theory of Justice (Uma teoria da justiça), em 1971, consagrou o nome de Rawls.

Tendo lido e amplamente discutido seu livro, Bill Clinton classificou Rawls como o maior filósofo político do século 20, e o convidava regularmente para jantar na Casa Branca.


O que, então, esse modelo de justiça tem a dizer ao mundo moderno?

1. As coisas como estão agora são claramente injustas

As estatísticas apontam para a injustiça radical da sociedade. Gráficos comparativos de expectativa de vida e projeções de salários nos levam a uma única e opressiva moral.

Mas no dia-a-dia, pode ser difícil levar este injustiça a sério, especialmente em relação a nossas próprias vidas.

Isso porque muitas mensagens chegam a nós dizendo que, se trabalharmos duro e tivermos ambição, poderemos ter sucesso. Rawls estava profundamente consciente de como o Sonho Americano infiltrou-se pelo sistema político e nos corações de cada um _ e ele sabia de sua influência corrosiva e regressiva.


Ele era um estatístico que sabia que os casos de pessoas que vão da pobreza à riqueza eram raríssimos, e não eram levados a sério por teóricos políticos.

Na verdade, mencionar esses casos era apenas uma inteligente artimanha política para fazer com que aqueles no poder não precisassem realizar a necessária tarefa de reformar a sociedade, de cima a baixo.


Rawls entendeu que os debates sobre a injustiça e o que fazer sobre isso muitas vezes empacavam em detalhes secretos e disputas mesquinhas: o que, em outras palavras, quer dizer que, ano após ano, nada era feito.


O que Rawls estava procurando, portanto, era uma maneira sucinta de mostrar às pessoas como suas sociedades eram injustas e o que elas podiam fazer sobre isso.

2. Imagine se você não fosse você

Rawls intuitivamente entendia que boa parte da razão pela qual as sociedades não se tornavam mais justas é porque aqueles que se beneficiam da injustiça atual eram poupados de precisar pensar muito sobre como seria ter nascido em circunstâncias diferentes.

Então, ele desenvolveu uma das maiores experiências mentais na história do pensamento político. E a chamou de: “o véu da ignorância“.

O experimento


Rawls pede para nos imaginarmos em um estado consciente e inteligente, porém antes do nosso nascimento, mas sem qualquer conhecimento de em que circunstâncias iremos nascer; nossos futuros envoltos por um véu de ignorância, pairando alto, acima do planeta (Rawls era fascinado pelo Programa Espacial Apollo). Não saberiamos que tipo de pais teríamos, como nossos bairros seriam, como seria o desempenho das escolas, o que o hospital local poderia fazer por nós, como a polícia e o sistema judicial iriam nos tratar, e assim por diante …


A pergunta que Rawls nos pede que façamos é:

Se nós não soubéssemos nada sobre onde iriamos parar, em que tipo de sociedade nos sentiriamos seguros para entrar?


O “véu de ignorância” evita que pensemos sobre todos aqueles que foram bem-sucedidos e foca nossa atenção para os riscos terríveis envolvidos ao entrar, por exemplo, na sociedade americana como se entrássemos em uma loteria social: sem saber se você iria ser o filho de um ortodontista em Scottsdale, Arizona ou a descendência de uma negra, mãe solteira nos bairros mais pobres de Detroit oriental.


Será que, em sã consciência, um apostador desta loteria do nascimento ‘pagaria para ver’ e acabaria na sociedade que temos agora?

Provavelmente não!

Ele insistiria que toda a regra deste jogo deveria ser mudada; caso contrário, seria muito arriscado.

3. Você sabe o que precisa ser corrigido

Rawls se encarrega de responder a pergunta para nós: qualquer participante sensato do experimento do véu de ignorância vai querer uma sociedade com um número de coisas no lugar: eles querem escolas muito boas, que os hospitais funcionem brilhantemente, um acesso impecável e justo à lei e moradia digna para todos.

O véu da ignorância força observadores a aceitar que o país em que eles realmente desejariam nascer aleatoriamente, seria quase certamente uma versão da Suíça ou da Dinamarca. Em outras palavras, sabemos em que tipo de sociedade queremos viver. Nós simplesmente não focamos nela corretamente até agora _ porque as escolhas já foram feitas.


O experimento de Rawls nos permite pensar de forma mais objetiva sobre o que uma sociedade justa seria em seus detalhes. Ao abordar grande decisões, como a alocação de recursos, precisamos apenas nos perguntar:

Como eu me sentiria sobre esse problema se eu estivesse por trás do “véu da ignorância?”

A resposta justa emerge imediatamente quando contemplamos aquilo que seria necessário, a fim de estar adequadamente posicionado, ainda que no pior cenário.

4. O que fazer em seguida


Muita coisa vai depender do que há de errado com a sua sociedade.

Neste sentido, Rawls teve mente aberta _ ele reconheceu que o experimento do véu de ignorância levanta diferentes questões em diferentes contextos: em alguns, a prioridade pode ser o de melhorar a poluição do ar, em outros, o sistema escolar.


Mas, fundamentalmente, Rawls nos fornece uma ferramenta para criticar nossas sociedades atuais com base em uma experiência maravilhosamente simples.

Saberemos que finalmente tornamos nossas sociedades justas quando formos capazes de dizer, com toda a honestidade, a partir uma posição de ignorância imaginária, antes de nosso nascimento, que simplesmente não importaria todo o tipo de circunstâncias que nossos futuros pais poderiam ter, e o tipo de bairro em que pudéssemos nascer.


O fato de que nós simplesmente não podemos em sã consciência assumir tal desafio agora, é uma medida de quão profundamente injustas as coisas continuam a ser – e, dessa forma, o quanto ainda resta para alcançar.

Tudo isto, John Rawls nos ajudou a ver.


Queremos saber o que você pensa! Faça o experimento mental e coloca nos comentários como seria a sociedade em que você gostaria de viver!


Alain de Botton é um escritor e produtor residente em Londres, famoso por popularizar a filosofia e divulgar seu uso na vida cotidiana.

O primeiro blog brasileiro a abordar as doenças raras na perspectiva da Agenda 2030 e dos Direitos Humanos!

O primeiro site brasileiro a abordar as doenças raras na perspectiva da Agenda 2030 e dos direitos humanos

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