NICOLE HASSOUN*
A indústria farmacêutica dos EUA inovou em resposta à pandemia, fornecendo não apenas vacinas mas também terapias para tratar pessoas com COVID-19. Mas uma lei desatualizada, projetada para estimular o desenvolvimento de medicamentos que salvam vidas, corre o risco de tornar novos tratamentos – para COVID-19 e outras doenças – inacessíveis para muitos norte-americanos.
O preço de um medicamento deve ser baseado em seus benefícios terapêuticos – não apenas no que o mercado pode suportar
Muitas empresas farmacêuticas confiam na Lei de Medicamentos Órfãos, que o presidente Ronald Reagan sancionou em 1983, para trazer tratamentos de ponta ao mercado rapidamente. A lei concede às empresas farmacêuticas créditos fiscais, exclusividade de mercado e outros incentivos para desenvolver medicamentos para doenças “órfãs”, que são definidas como doenças que afetam menos de 200 mil pessoas nos EUA. Tais doenças incluem esclerose lateral amiotrófica e síndrome de Tourette, mas também doenças como malária que são raras nos EUA, mas são as principais causas de morte em todo o mundo.
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Mas, como estudiosos e defensores do acesso a medicamentos argumentaram, a Lei de Medicamentos Órfãos tem falhas que correm o risco de manter os preços altos.
Sou uma bioeticista que tem estudado a saúde global e o acesso a inovações médicas essenciais. Acredito que haja uma alternativa para modificar os estímulos que a Lei de Medicamentos Órfãos oferece com base no valor de um medicamento: seu impacto na saúde global.
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A Lei de Medicamentos Órfãos
Antes de os formuladores de políticas aprovarem a lei, as empresas farmacêuticas concentraram seus esforços no desenvolvimento de tratamentos para doenças comuns que afligiam milhões de pessoas. Era sua maneira de maximizar o lucro.
Mas a Lei de Medicamentos Órfãos, além de criar incentivos fiscais e créditos, permite que as empresas obtenham um voucher de revisão prioritária que efetivamente estende a duração de sua patente para um medicamento de sua escolha. Isso porque quando a Food and Drug Administration (FDA) revisa um medicamento de forma mais acelerada, este pode ser vendido sob uma patente por mais tempo. As empresas podem vender esse voucher por milhões de dólares para outras empresas farmacêuticas.
A Lei de Medicamentos Órfãos foi brilhante, até que as empresas farmacêuticas começaram a encontrar brechas nela. As empresas podem obter o status de medicamento órfão para uma coleção cada vez maior de doenças que oficialmente se qualificam como “raras”, mas, na verdade, são apenas subpopulações de doenças muito comuns. Por exemplo, Humira®, fabricado pela AbbVie, é o medicamento mais vendido no mundo para artrite reumatoide e outras doenças inflamatórias, mas recebeu status de medicamento órfão para artrite reumatoide juvenil.

COVID-19 e Remdesivir®
Como centenas de americanos ainda morrem de COVID-19 todos os dias, novos tratamentos são essenciais e é imperativo que sejam acessíveis.
Quando a pandemia de COVID-19 chegou pela primeira vez aos EUA, e menos de 200 mil pessoas estavam doentes no país, a Gilead entrou com um processo para concessão de status de medicamento órfão para o medicamento antiviral Remdesivir® – um dos únicos tratamentos existentes para SARS-CoV-2.
Houve um grande clamor público sobre o fato de a Gilead estar abusando do sistema para obter benefícios dos contribuintes e mais exclusividade de mercado, embora o Remdesivir tenha sido desenvolvido com financiamento público. A Gilead estava redirecionando o Remdesivir® para a COVID-19 e ele claramente seria vendido para um mercado de massa. Após uma reação significativa da opinião pública , a Gilead retirou seu pedido de medicamento órfão junto a FDA.
Empresas ainda está tentando redirecionar (repurposing) medicamentos órfãos para o mercado de massa da COVID-19, mantendo seu alto preço. É o caso do pembrolizumab, um medicamento órfão para melanoma e câncer gástrico que atualmente está sendo testado como um medicamento em potencial para COVID-19. Custa US$ 5.834 por 4ml, um preço que a maioria dos americanos simplesmente não pode pagar. As empresas também estão testando muitos outros medicamentos órfãos para a COVID-19. Em 2018, o custo médio de um medicamento órfão foi de US$ 150.854 por paciente/ano.
As empresas também reivindicam créditos por medicamentos que não são novos nem importantes. Elas muitas vezes reaproveitam medicamentos antigos para tratar doenças órfãs que podem ter sido usados para tratamento off label – ou sem aprovação oficial da FDA – por um longo tempo. Às vezes, as empresas encontram doenças órfãs que podem ser tratadas com seus medicamentos de sucesso (blockbuster). Ou eles fatiam doenças importantes, como câncer de mama, em partes cada vez menores para obter uma designação de medicamento órfão. Por exemplo, quase qualquer câncer pode ser subdividido com base em diferenças genéticas até que a população daqueles que dele padeçam caia abaixo do limiar de 200 mil pacientes mencionado anteriormente. Herceptin® é usado para tratar câncer de mama, mas a AstraZeneca e a Daiichi Sankyo receberam a designação de medicamento órfão para testar o medicamento para câncer gástrico, apesar de ser um medicamento muito vendido (blockbuster) .

Como resolver o problema dos medicamentos órfãos
Alguns especialistas em regulação e pesquisadores propõem limitar a duração da exclusividade de mercado para medicamentos órfãos se uma doença não mais se qualificar como órfã, ou após seis anos. Outros sugerem apenas conceder o status de medicamento órfão para novos compostos ou aqueles que de outra forma não seriam economicamente viáveis.
O governo ainda pode recompensar as empresas por seus esforços, com incentivos fiscais e de pesquisa, e dar-lhes vales (vouchers) de revisão prioritária para novas inovações. Mas proponho que essas recompensas sejam baseadas no impacto de suas inovações na saúde, e que as empresas devam concordar com licenças de acesso aberto que permitam que fabricantes de genéricos também os produzam. Quanto mais vidas as inovações das empresas salvassem, e quanto maior fosse a melhoria na qualidade de vida, maior seria a recompensa a ser concedida.
Os pesquisadores podem estender a análise já existente de impacto global dos medicamentos na saúde para esse fim, considerando a necessidade, o acesso e a eficácia de novas inovações. Assim, por exemplo, se dois novos medicamentos fossem inventados para uma doença órfã, mas um salvasse 10 vezes mais vidas, o primeiro medicamento receberia as recompensas multiplicadas por 10 – em termos de benefícios fiscais, tempo de exclusividade e outros benefícios.
Eu também acredito que a produção de medicamentos órfãos deve ser open source para que se limite seus custos aos custos marginais de produção. Fazer isso é melhor do que recompensar as empresas com base na disposição em pagar (willingness to pay) dos pacientes. No momento, as empresas ganham mais dinheiro vendendo medicamentos para doenças crônicas de pacientes ricos, como alergias _ que podem tratar, mas não curam.
Minha proposta é desvincular os lucros do volume de vendas e recompensar as empresas com base no impacto da nova terapia na saúde, desde que concordem em permitir que qualquer empresa fabrique os produtos resultantes.
Os incentivos fiscais e a duração do processo de revisão da FDA especificados no voucher podem ser baseados em quantas vidas as inovações salvam e quanta incapacidade elas aliviam. Já existem alguns fundos de prêmio que recompensam empresas por fazer pesquisas sobre doenças que não afetam muitas pessoas nos EUA, mas que matam muitas pessoas globalmente. Da mesma forma, o chamado “compromisso antecipado de mercado“ geralmente recompensa as empresas por criar novos medicamentos que tenham um grande impacto. E a avaliação econômica com base no impacto na saúde pode nos ajudar a definir limites apropriados para recompensas.
No momento, as empresas se concentram em fornecer novos tratamentos para doenças crônicas de pacientes ricos, em vez de ter o maior impacto na saúde. É assim que eles ganham mais dinheiro. Mudar esse sistema mudaria as prioridades de toda a indústria farmacêutica.
Nicole Hassoun é Professora de Filosofia, Binghamton University, State University of New York
Artigo originalmente publicado em The Conversation em 13 de janeiro de 2021.
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Nota da Redação
A questão do preço muitas vezes exorbitante dos tratamentos para doenças raras foi objeto de preocupação da Eurordis, coalizão européia de associações de pacientes, em 2018. Sua ambição era contar com preços três a cinco vezes mais baixos em 2025, em comparação aos praticados naquele ano. No Brasil, este é um debate praticamente inexistente entre associações e coalizões de associações de pacientes, o que tem reflexos no acesso oportuno e justo destes aos medicamentos de alto custo.