Doenças raras, deficiências e “recessão democrática”

CLÁUDIO CORDOVIL

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Foi anunciada no dia 21 de março a nova composição do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE) para o triênio 2022-2025. Entre os novos conselheiros, representações ligadas ao universo das doenças raras: Febrararas , AFAG e Associação Brasileira de Síndrome de Williams (ABSW) e Retina Brasil .

Trata-se de conclusão de processo discutível e tumultuado, iniciado com a publicação do Decreto nº 10.177, de 16 de dezembro de 2019, que visava “recriar o CONADE

Em 11 de abril de 2019, nova investida antidemocrática contra a participação social, com a publicação do Decreto 9.759. Este simplesmente extinguira, com uma canetada, TODAS as instâncias colegiadas de participação social no âmbito da Administração Pública Federal.

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A canetada se deu aos 100 dias do atual governo, como a definir um marco simbólico de sua gestão.

O referido decreto definiu que a partir daquele ato seriam extintos os colegiados instituídos por decreto, por ato normativo ou de outros colegiados, não sendo afetados aqueles criados a partir de 1º de janeiro de 2019, ou seja, durante o próprio governo vigente. O Decreto nº 9.759/2019 atingiu diretamente um total de 2.593 colegiados, sendo 996 ligados a instituições federais de ensino, 734 criados por atos internos do governo federal e 863 sem ato de criação identificado.

Na verdade, os cortes eram esperados. Já empossado, em março de 2019, durante um jantar com lideranças conservadoras em Washington (EUA), o atual presidente da República dissera aos convivas que o sentido de seu governo não era “o de construir coisas para o povo brasileiro, mas desconstruir”. Só depois disso, segundo ele, é que chegaria o momento de começar a fazer algo pelo país.

Na ocasião, o atual presidente também sentenciara que o Brasil caminhava “para o socialismo, para o comunismo”, mas que tal processo teria sido interrompido com a sua vitória eleitoral.

Da razia provocada pelo Decreto 9.759, publicado em abril de 2019, sobraram 32 conselhos consultivos, número que representa apenas 1,2% do total de colegiados ligados à administração federal e que passaram a operar com restrições determinadas pelo governo. A tentativa explícita de extinguir os conselhos e demais colegiados mais tarde foi parcialmente barrada por via judicial junto ao STF, mas isso não foi suficiente para impedir o agravamento da “recessão democrática” nacional.

Da razia provocada pelo Decreto 9.759, publicado em abril de 2019, sobraram 32 conselhos consultivos, número que representa apenas 1,2% do total de colegiados ligados à administração federal, e que passaram a operar com restrições determinadas pelo governo.

Em dezembro de 2021, a publicação do Edital nº 27/2021 pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos impediu a efetiva participação no CONADE das pessoas com deficiência por meio de suas organizações representativas em processo eleitoral transparente, democrático e legítimo.

Em seu artigo 7º, ficava instituído “processo seletivo” para a escolha de novos membros do conselho, no que foi visto por algumas organizações da sociedade civil como medida que consagrou composição “ilegítima” “pois seu processo fere os preceitos democráticos de eleições livres” que ocorriam até 2019.

As determinações constantes no Edital nº 27/2021 suprimiram, por exemplo, a representação dos conselhos estaduais e municipais, contrariando as deliberações da III Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência que, realizada em 2012, aprovara a ampliação das vagas destinadas para esses colegiados.

Tais alterações nele constantes também excluíram do CONADE a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência (AMPID), participante histórica do Conselho. A Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), outras entidades representativas que sempre estiveram presentes e atuantes no CONADE optaram por sequer participar do tal ‘processo seletivo’, a fim de não ratificar as mudanças impostas no formato de composição do CONADE. Também foi suprimido do CONADE, com o “processo seletivo”, o Instituto Vidas Raras, com o qual a Febrararas mantém relações hostis.

O tiro de misericórdia contra aquele CONADE democrático e representativo existente antes de 2019 foi desferido no dia 21 de março deste ano com a publicação da Decisão nº7/2022/CONADE/SNDPD/MMFDH que declarou o resultado final do referido “processo seletivo”, para o triênio 2022-2025.

Na categoria “Organizações que atuam na área de deficiência decorrente de causas patológicas ou doenças raras” foram selecionadas, pelo governo vigente, a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas) e a Retina Brasil. Já para a categoria “Organizações que atuam na área de deficiência física“, a Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (AFAG) e a Federação das Fraternidades Cristãs de Pessoas com Deficiência do Brasil (FCD/BR). AFAG e Febrararas mantém boas relações entre si desde tempos imemoriais.

Repercussões da decisão de se “recriar o CONADE”

As repercussões da instituição de “processo seletivo” no CONADE que culminou na escolha de Febrararas para representar os interesses das pessoas que vivem com doenças raras, dentre outras medidas, logo se fizeram sentir.

Em nota, o Coletivo Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras com Deficiência e a Secretaria Nacional de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT Brasil criticou o precedente criado pelo tal processo seletivo, “que levou à participação organizações da sociedade civil que não se deram conta de sua irresponsabilidade em aceitarem as regras estabelecidas”, ao arrepio das instâncias efetivas de controle social, consagradas pela Constituição Federal da República Federativa do Brasil, em 1988.

E afirma a nota: “Cabe ressaltar que em um estado democrático, um órgão de controle social como os conselhos de direitos, só pode funcionar efetivamente se for formado a partir de seus coletivos, com deliberações de suas esferas próprias, da própria população a que se destina”.

A referida representação da sociedade civil conclui sua nota com uma robusta manifestação de repúdio.

Não podemos deixar de manifestar nosso veemente repúdio a todo esse processo, as trabalhadoras e os trabalhadores com deficiência só aceitam sua representação através de sua participação efetiva, por meio de suas organizações representativas, em um processo eleitoral transparente, democrático e legítimo.

Coletivo Nacional de Trabalhadores e Trabalhadoras com Deficiência e a Secretaria Nacional de Políticas Sociais e Direitos Humanos – CUT Brasil

Pela primeira vez, com este polêmico “processo seletivo”, o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) a doença infecciosa que mais gera pessoas com deficiência no Brasil, ficou de fora do conselho.

O processo teve alguns vícios e erros do edital que levaram a distorções complicadas. Entre elas, por exemplo, misturar numa mesma composição patologias negligenciadas de alta incidência no Brasil, como hanseníase e doenças renais, que levam a deficiências, com doenças raras. Desta forma, misturam-se entidades que deveriam ter vagas separadas, para garantir uma maior abrangência e representatividade do conselho”, diagnosticou Artur Custódio, Coordenador Nacional do Morhan.

Artur observa que era usual nesses editais a paridade dos votos em relação ao número de vagas. Por exemplo, duas vagas, dois votos. Pelo edital do “processo seletivo”, duas vagas decorrem de um voto. “Isso somado à ausência de apresentação das entidades, sua história e plataforma eleitoral, favoreceu acordos e composições de bastidores e de pouca transparência”, analisa ele.

A mudança das regras do jogo no CONADE com a realização de “processo seletivo” traz para aquele colegiado representações sem nenhuma experiência em “participação social” e pouco familiarizadas com os mecanismos de governança de coletivos democráticos.

Supressão da participação social e “recessão democrática”

A participação social em bases transparentes é pedra angular das democracias dignas deste nome.

O tal “processo seletivo”, ora endossado por Febrararas, AFAG, Retina Brasil e ABSW, com sua participação no CONADE para o triênio 2022-2025, é manifestação inequívoca do aprofundamento da “recessão democrática” em curso no mundo e, com colorações bastante pitorescas, no Brasil.

Segundo Wikipedia, “a recessão democrática refere-se ao declínio da democracia liberal ou à força das instituições democráticas em países que anteriormente tinham um nível mais alto de liberdade e democracia. A expressão, cunhada pelo cientista político Larry Diamond, é análoga à ‘recessão econômica’, que se refere a um declínio na economia”.

A opção de se fundir, de forma tão visceral, o nascente movimento das pessoas que vivem com enfermidades pouco frequentes ao experiente movimento das pessoas com deficiência sob a égide do CONADE é algo não trivial.

Na França, por exemplo, as pessoas que vivem com Atrofia Muscular Espinhal e outras doenças neuromusculares optaram por não abraçar tal coabitação. Escolha bastante acertada, a nosso ver, pelo que representou para a criação de novos sujeitos políticos na esfera pública (as pessoas que vivem com doenças raras), investidos de uma identidade social emergente e detentores de maior assertividade na luta por suas agendas específicas. Basta ver os resultados obtidos pelos doentes neuromusculares em França.

É evidente e inquestionável que muitas doenças raras cursam com deficiências. Isso não se discute. O que se questiona é a conveniência e necessidade de ligação tão visceral entre os dois movimentos em órgãos colegiados ligados tão visceralmente às agendas das pessoas com deficiência.

Mas não é só a simbiose entre deficiência e doenças raras que sugere problemas em termos de estratégia política. A filiação de entidades representativas das pessoas que vivem com enfermidades pouco frequentes, inexperientes no jogo democrático, a agremiações sem vocação republicana alguma, como o atual CONADE, é receita certa para o agravamento da “recessão democrática”. Notadamente, em um país onde os doentes raros ainda são cidadãos de segunda classe.


O primeiro blog brasileiro a abordar as doenças raras na perspectiva da Agenda 2030 e dos Direitos Humanos!

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