O abismo entre a lei e a realização de um direito

ROSANA MARTINEZ


Esse texto tem como primeiro objetivo, justificar algumas decisões que estou tomando. Não sou de me lamentar publicamente, nem de me expor. Mas espero que meu relato dê voz às 13 milhões de famílias brasileiras com Doenças Raras que lutam diariamente com essa e outras difíceis demandas.


Meu filho Pedro, de 34 anos, tem Distrofia Muscular de Duchenne (DMD), doença rara, degenerativa e progressiva que causa fraqueza muscular generalizada. Pedro está em estágio avançado da doença, não movimenta braços, nem pernas, depende de terceiros para as atividades mais rotineiras, tais como alimentar-se, higiene, vestir-se, uso do sanitário, deslocamentos e administração de medicação, entre outras, de acordo com Tabela NEAD, que avalia grau de dependência de terceiros, preenchida por Enfermeiro habilitado.

Ele já apresenta comprometimento cardíaco e respiratório com indicação de ventilação não invasiva 24 h, conforme laudo da Fisioterapeuta Respiratória que o assiste.


Eu e o pai dele vimos atuando como cuidadores desde que Pedro foi diagnosticado, aos quatro anos de idade. Com a evolução da sintomatologia – hoje severa – essa função vem exigindo cada vez mais tempo e presença diuturna, além de uma boa dose de aquisição de conhecimentos em saúde – que não é nossa área de formação. Aliado a toda essa carga, e pelo fato de estarmos – eu e o pai – na dita “terceira idade”, já apresentamos comorbidades decorrentes de esforço físico, privação de sono e fadiga resultantes da dura rotina de cuidados, de domingo a domingo, sem descanso.


Por todos esses motivos, em setembro de 2021, a Médica Especialista que o acompanha solicitou Internação Domiciliar, com serviço de Técnicos de Enfermagem 24 h, a qual encaminhamos ao Plano de Saúde – IMPCG, onde Pedro é dependente do pai – servidor da Prefeitura.


Pedro já é usuário do Serviço de Atenção Domiciliar do IMPCG (recentemente estruturado pela Portaria SAD/IMPCG nº 3, de 17/02/2020), com Fisioterapia e Fonoaudiologia, além de visitas mensais de médico e enfermeira, em domicílio, há alguns anos.

Essa Portaria prevê o atendimento multiprofissional em domicílio, conforme a prescrição do médico assistente do paciente, e de acordo com a necessidade de assistência profissional, com vistas a prevenir internações hospitalares e agravos no quadro geral.


Nossa solicitação foi negada, com a justificativa de que “os planos públicos não estão sujeitos às mesmas leis da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que delega essa competência aos planos privados.”

Até quando o Brasil continuará tratando as Pessoas com Deficiência como cidadãos de segunda classe?


Discordando dessa interpretação, nosso advogado acionou o Judiciário (Processo nº 0840823-38.2021.8.12.0001). Para isso, acrescentamos ao pedido médico, laudos e tabelas comprobatórios das condições e necessidades do Pedro, bem como lembramos o que nos garante a lei, através do Art 19-I, da Lei 8.080, de 19/09/1990, reforçado pela Lei 10.424/2002, que regulam a Internação Domiciliar no âmbito do SUS.


Apesar de toda essa documentação, a primeira Decisão Tutelar veio em 02/12/2021, de uma magistrada substituta, que determinou que o paciente fosse incluído nos serviços que já possuía, não contribuindo para as necessidades que motivaram a ação, o que justificou uma contestação nossa a essa decisão.


A alteração da Decisão Tutelar veio em 11/02/2022 e, apesar de reconhecer a complexidade, necessidade e gravidade do caso, julgou “razoável a concessão de um técnico de enfermagem por 12 horas”, a despeito da prescrição da Médica Especialista e de todos os laudos que – de acordo com as leis supramencionadas – o tornam apto ao benefício por 24 h.


Além de mãe cuidadora, sou fundadora e presidente da Associação de Doenças Neuromusculares e Raras de MS-ADONE, desde 2005, onde atendo cerca de 80 famílias em todo o Estado.


Só para constar, alguns dos nossos pacientes com a mesma doença do Pedro – a DMD – e outras, tão graves quanto, estão em Internação Domiciliar há tempos por seus planos de saúde onde, além da equipe multiprofissional completa, recebem os equipamentos de suporte de vida (Trilogy, Cough Assist, Bipap e seus acessórios) e de facilitação no dia-a-dia (guincho de transferência, cama hospitalar e outros).

São insumos de extrema necessidade e caríssimos (variando de 10 a 40 mil reais, fora a manutenção). Temos alguns, comprados com nossos próprios recursos, ao longo dos anos. Outros – os mais caros – obtivemos por judicialização. Por isso, nessa ação, pedimos somente os Técnicos de Enfermagem 24 h, serviço que custa em média 10 mil reais/mês – valor inviável para qualquer família de classe média; ainda mais para as que, como a nossa, já arcam com medicamentos de custo elevado, equipamentos de locomoção e sua manutenção, tratamento fora do Estado e outros tantos.


Vamos recorrer da Decisão, claro! Mesmo sabendo que o IMPCG também pode recorrer; e provavelmente vai! Ou seja, ainda será um longo caminho para que o direito do Pedro seja cumprido integralmente, como está na lei. Mas o tempo da justiça se contrapõe à necessidade de nosso filho e à nossa realidade diária. E precisaremos, mais uma vez, “cortar na própria carne”.


Como o pai do Pedro ainda não tem tempo para se aposentar e é o principal provedor de nossa pequena família, dei entrada no pedido de minha aposentadoria – após 38 anos de serviço público – para assumir integralmente os cuidados dele. Para isso, estou também me afastando de Comitês, Grupos de Trabalho e outras representações (motivos deste texto justificativo), por tempo indeterminado.


A ADONE é a causa à qual dediquei minha vida; é minha motivação e minha devoção. Tenho uma enorme responsabilidade com todo o capital intelectual, acadêmico e humano que acumulei em todos esses anos de militância e que tem me permitido ajudar tantas famílias, com as quais tenho compromisso de seguir informando, capacitando, encaminhando, apoiando e defendendo. Espero não ter que fazer a escolha de abrir mão disso também.


Todos nós temos que morrer um dia. Para os Raros, essa finitude é uma verdade sempre premente. Mas, quando chegar o momento, pode e deve acontecer com dignidade e plenitude de direitos; nunca por omissão. A vida já foi bem dura com eles.


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Rosana Puga de Moraes Martinez é Presidente da Associação de Doenças Neuromusculares (ADONE) – Mato Grosso do Sul

Nota da Redação

O relato de Rosana sobre a situação de Pedro me recordou acontecimentos testemunhados por mim em 2007, em Portugal, e sobre os quais tratei no blog Academia de Pacientes. Abaixo, divulgo o link destas matérias.

O que aprendi com os raros portugueses: o Caso Manuel Mattos (I)

O que aprendi com os raros portugueses: o Caso Manuel Mattos (II)

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